
A decisão unilateral do presidente Donald Trump de enviar milhares de soldados a Los Angeles não é qualificada por uma ameaça real, seja ela uma “rebelião” doméstica ou uma “invasão”, como descrito pelo mandatário. Atropela a Constituição, se apossa das Forças Armadas como peões políticos, e esgana a liberdade de expressão. É uma estratégia deliberadamente inflamatória, com horizonte final de expansão do poder do Executivo.
As manifestações, com focos majoritariamente pacíficos espalhados pela cidade, não chegaram nem perto de sobrecarregar as forças de segurança estaduais. Mais grave ainda, o poder estadual não assentiu. Pelo contrário, fez e continua a se fazer oposto a esse envio, com o governador da Califórnia, Gavin Newsom, chegando até mesmo a ser ameaçado de prisão por “obstruir” a justiça.
O embasamento da ação do governo federal, portanto, tem aparência simbólica — mas traz resultados concretos graves. Tem como objetivo a expansão de um caos artificial e instrumentalizá-lo a favor de um projeto perigosíssimo de controle. Não é sem motivo que a última vez que um presidente americano federalizou a Guarda Nacional contra a vontade de seu governador (à época, com a nobre razão de proteger manifestantes) ocorreu há tanto tempo, em 1965. Essa prerrogativa é por natureza muito consequente, pois toca em dois pontos de suma importância: a politização das Forças Armadas e o sensível equilíbrio de poder entre as unidades federativas e Washington.
Não é surpreendente que o ocorrido tenha sido engendrado desde o começo para se desdobrar dessa forma. Primeiro, agentes federais conduziram operações muito delicadas em regiões em densamente populadas por imigrantes que, a despeito de sua ilegalidade, se integraram de forma plena e pacífica na vida civil onde se inseriram (muitas vezes sob fuga de violência desenfreada e em busca de melhores condições para suas famílias). Assim, quando manifestações (previsivelmente) eclodiram, surgiu a oportunidade desejada: enviar o Exército, inflar de maneira desnecessária o caos, e capitalizar os embates subsequentes como exemplo de que somente o presidente Trump pode esmagar a desordem. Como bônus, ao realizar muitas dessas ações em locais onde o Partido Democrata governa, arma-se uma arapuca política; se esses políticos se opuserem ao governo federal, correm o risco de serem vistos como cúmplices da suposta anarquia.
Quem sai perdendo, para além do óbvio, são as Forças Armadas. Feitas de marionete política, são forçadas a pisotear seu princípio democrático de não intervenção em assuntos civis (salvo raras exceções, que não estão circunstanciadas no presente caso). A desconfiança da sociedade no meio militar, em tempos de já existente ceticismo, aprofunda-se com razão.
Vale, também, dar um passo para atrás e reconhecer a natureza esquemática desse evento. Trata-se de mais uma peça de um jogo perverso de maximização do poder nas mãos do presidente, de reengenharia institucional para fins que sirvam apenas seus interesses, de trazer à tona uma nova realidade político-social que não abarca o diferente do prescrito como ideal na vida pública, seja em matéria de opiniões, ideais, costumes, comportamentos, origem ou etnia. É mais um passo em direção a um país onde divergir não é uma opção, mas sim um pretexto para ser punido.